Monday, December 19, 2005

O homem acordou tarde, sentou-se na cama às escuras tacteou o maço de tabaco acendeu um cigarro. Não sabe bem o que fazer. Domingo é um dia inútil. Deve acordar completamente? Quer ficar parado ali naquele tempo entre o sonho e a luz. Fuma o cigarro devagar. Não tem pressa. É domingo. Fecha os olhos revê o sonho, o cigarro começa a queimar-lhe os lábios, apaga-o. Menos vinte anos bastariam. Talvez vinte anos não chegassem, seria necessária outra vida para começar de novo para ser outro. Mas ajudaria ser outro? E que outro teria de ser? Até a encontrar tudo parecia simples, parecia bom, certo. Os domingos eram dias bons. Acordava tarde com os barulhos da mulher na cozinha nunca amara ou desejara outra. Gostava dos seus pés pequenos, do corpo arredondado dos olhos alegres. Tantas vezes a olhara quando ela ficava de costas à janela a falar com alguma vizinha. Era tão bonita a Clara e a tinha uma voz tão sossegada. Amava-a ainda? Nas últimas semanas fizera esta pergunta centenas de vezes. Desde que a conhecera que não olhava Clara no olhos, sempre que se aproximava a hora de chegar a casa sentia o corpo a vacilar e se Clara percebesse? E se Clara lhe perguntasse, mentiria? Os domingos tornaram-se os dias mais difíceis. Tão longos os últimos domingos. Ter de passar o dia em casa com medo de enfrentar Clara e sabendo que seria improvável cruzar-se com a rapariga nova. E ela será que ela sabe que ele existe? Falavam todos os dias. Sim, claro. Mas saberá ela que ele existe? Existir como ela passara a existir para ele? Como pensamento constante. Como peso no peito a aumentar a cada hora que passa? Como alegria nunca antes sentida? Não. Nunca. Nem menos vinte anos a levariam a vê-lo assim. Ela enche de juventude a sala. Todos os dias lhe estende a mão que ele aperta de leve. Olha todos com aqueles imensos olhos azuis, olhos de água profundos e perturbantes. E sorri, sorri sempre como se da vida nada mais conhecesse que a alegria. E se solta o riso o tempo pára à volta dela. O homem fica de costas, sem coragem de se mover quando ela ri. Dois dias depois de chegar pousou-lhe a mão no ombro. O homem ainda se lembra como aquele gesto tão banal lhe percorreu o corpo e estremece. Estremece de novo sentado na cama. Não pode continuar ali. É preciso deixar de pensar. Vai descer para comer e sair para o café. Sabe que ela não passa lá ao domingo, mas se ela for, ele estará à espera. Não que o homem se lhe dirija, mas sabe que ela lhe sorrirá. E esse sorriso é o que basta para mais uma noite.

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