Friday, December 23, 2005

dizia eu:

o tempo desgasta os lugares por onde passa
lima as arestas torna-os iguais
redondos vulgares
o tempo traz o tédio


depois lembrei-me de ti
de ti e de mim e do tempo
que por nós passou


se quando te ausentas
ainda entristeço
se quando me abraças
ainda me comovo
se ainda me alegro
com o teu riso
se quando me tocas
ainda estremeço

devo dizer:

meu amor
o tempo não passou por aqui

Thursday, December 22, 2005

esta vontade de ficar em silêncio sentada à tua porta
fechar os olhos e rever os risos da infância
o pai a chegar com os seus passos musicais
nós a corrermos para nos esconder debaixo da mesa
o riso contido a alegria pura da sua voz pela casa
os nossos nomes chamados queridos amados


litania para este natal

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa nave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira
1967

Monday, December 19, 2005

não demores nos meus
o azul perigoso dos teus olhos
não chegues de rompante
às salas onde não te espero
não venhas com o teu cabelo jovem
perfumar os meus dias
retira a tua mão de menina
do meu ombro quando me falas
nunca nunca mais
me sorrias

O homem acordou tarde, sentou-se na cama às escuras tacteou o maço de tabaco acendeu um cigarro. Não sabe bem o que fazer. Domingo é um dia inútil. Deve acordar completamente? Quer ficar parado ali naquele tempo entre o sonho e a luz. Fuma o cigarro devagar. Não tem pressa. É domingo. Fecha os olhos revê o sonho, o cigarro começa a queimar-lhe os lábios, apaga-o. Menos vinte anos bastariam. Talvez vinte anos não chegassem, seria necessária outra vida para começar de novo para ser outro. Mas ajudaria ser outro? E que outro teria de ser? Até a encontrar tudo parecia simples, parecia bom, certo. Os domingos eram dias bons. Acordava tarde com os barulhos da mulher na cozinha nunca amara ou desejara outra. Gostava dos seus pés pequenos, do corpo arredondado dos olhos alegres. Tantas vezes a olhara quando ela ficava de costas à janela a falar com alguma vizinha. Era tão bonita a Clara e a tinha uma voz tão sossegada. Amava-a ainda? Nas últimas semanas fizera esta pergunta centenas de vezes. Desde que a conhecera que não olhava Clara no olhos, sempre que se aproximava a hora de chegar a casa sentia o corpo a vacilar e se Clara percebesse? E se Clara lhe perguntasse, mentiria? Os domingos tornaram-se os dias mais difíceis. Tão longos os últimos domingos. Ter de passar o dia em casa com medo de enfrentar Clara e sabendo que seria improvável cruzar-se com a rapariga nova. E ela será que ela sabe que ele existe? Falavam todos os dias. Sim, claro. Mas saberá ela que ele existe? Existir como ela passara a existir para ele? Como pensamento constante. Como peso no peito a aumentar a cada hora que passa? Como alegria nunca antes sentida? Não. Nunca. Nem menos vinte anos a levariam a vê-lo assim. Ela enche de juventude a sala. Todos os dias lhe estende a mão que ele aperta de leve. Olha todos com aqueles imensos olhos azuis, olhos de água profundos e perturbantes. E sorri, sorri sempre como se da vida nada mais conhecesse que a alegria. E se solta o riso o tempo pára à volta dela. O homem fica de costas, sem coragem de se mover quando ela ri. Dois dias depois de chegar pousou-lhe a mão no ombro. O homem ainda se lembra como aquele gesto tão banal lhe percorreu o corpo e estremece. Estremece de novo sentado na cama. Não pode continuar ali. É preciso deixar de pensar. Vai descer para comer e sair para o café. Sabe que ela não passa lá ao domingo, mas se ela for, ele estará à espera. Não que o homem se lhe dirija, mas sabe que ela lhe sorrirá. E esse sorriso é o que basta para mais uma noite.


os teus olhos atravessam como aves
o meu corpo trémulo de desejo e saudade
eram as tuas mãos que me traziam as manhãs frias
com cheiro a erva e húmus e chuva e ternura
recuso escrever uma palavra que te contenha
recuso esses teus olhos que deixei entrar de rompante
a alvoraçar-me o corpo
recuso escrever que ainda anseio a tua chegada
o teu riso a tua boca a tua carne
recuso olhar-te recuso que saibas que fiquei mais velho
mais triste mais em silêncio
no dia que deixaste de vir e eu não pude mais
tocar o teu cabelo enquanto dormias
recuso dizer-te uma só vez que de ti tudo me falta
que tudo recuso por ti



Comovo-me com os teus passos descalços
Oh mulher tão branca
o teu riso traz-me os olhos rasos de água
fecho-os e fico muito quieto
quero sentir-te por dentro de mim
imagem a alastrar no corpo
contenho a respiração até ao limite
não me permito nenhum movimento
a não ser o bater do coração por ti